segunda-feira, 29 de abril de 2013

Testemunho - Lya Luft

Para dar testemunho de meu tempo não preciso desfraldar uma bandeira partidária ou me enfiar nas trincheiras da guerra, nem as da violência cotidiana: na minha postura há de se refletir o que penso.
Para perseguir meus ideais não preciso me deixar matar: basta procurar a coerência, o que pode ser uma forma de heroísmo silencioso. Porém é bom lembrar que coerência rígida pode ser mediocridade.
Para ser boa filha não preciso me encolher, mentir, me afastar: os pais servem para fazer a gente crescer, eventualmente voar, ainda que seja para longe deles, mas sem que os laços de afeto precisem se romper.
Para ser boa mãe não preciso me vitimizar: a mãe-mártir desperta culpa e causa aflição. Só uma pessoa que se respeita e valoriza pode realmente amar seus filhos, prepará-los para não serem almas subalternas e lhes servir de eventual apoio.
Para ser boa amiga não preciso fingir nem mentir, vigiar nem agradar o tempo todo. Uma amiga verdadeira pode dar colo, abraço, escuta, dividir alegrias e ouvir confidências, mas não precisa bajular nem criticar.
Para ser boa amante não preciso me anular: basta – e já é difícil – ser estimulante e confiável, terna e cúmplice, quando for possível. Carinho não é servilismo nem sujeição.
Para ser inteira não preciso me defender erguendo barreiras à minha volta: às vezes só me fragmentando e dilacerando de amor, dor ou perplexidade, terei chance de juntar meus pedaços e me reconstruir mais inteira.
Para realizar alguma justiça social não preciso me despojar do que possuo, se o que tenho serve para a minha dignidade e não para o desperdício. O melhor é começar em casa, pois se pago miseravelmente a minha empregada, não posso pronunciar sem constrangimento palavras como “justiça” e “dignidade”.
Para ser humana não preciso exigir de mim o que seria próprio de deuses, mas prestar atenção nos outros e abrir-lhes espaço, admitir o mistério de tudo, respeitar a vida, tolerar minhas fraquezas, aproveitar meus talentos e procurar o dom da alegria – que é fundamental.
Para viver bem devo eventualmente pensar na morte, não como um susto mas estímulo para ser melhor; para morrer bem devo curtir minha vida de um jeito positivo, não me enxergando como a última nem a primeira das criaturas, mas vivendo de modo que para alguém ao menos eu tenha feito alguma diferença.
Pois alienação é também cultivar a amargura e ignorar que a vida pode ser boa, o amor positivo, o ser humano comovente, e o significado de tudo acessível ao coração e ao sonho.
Se não posso corrigir os males do mundo, da minha reduzida condição pessoal, posso ao menos não colaborar para que ele se torne mais violento, mais mesquinho e mais cruel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário